Uma memória que quase que se esquece, mas que para sempre permanecerá

21-04-2020

De mim para ti, mesmo que nunca chegues a ler.

A informação é incerta. As dúvidas são constantes. E, apesar de um questionamento regular sobre as suas motivações, o avanço do tempo traz consigo sequelas inevitáveis, para quem as vive e para quem as assiste, sem nada poder fazer.


Liberdade

Uma irmã, uma mãe, uma avó... Uma vida cheia de histórias, uma mulher cómica, uma rapariga irreverente... Parei para pensar. Olhei em volta. Respirei. A primeira coisa que me veio à cabeça? A história de uma mulher feliz e sem medo do que o mundo pensa. Uma mulher fruto do seu tempo e digna do nome que carrega, Liberdade.

Criada no tempo da PIDE, decidiu seguir os ensinamentos dos seus mais próximos e nunca se rebaixou às imposições. Leu livros proibidos e aproveitou a sua criatividade para fugir às normas. As marcas no corpo do seu pai tornou-a uma pessoa em busca da emancipação. A capacidade de fugir ao lápis azul passou a ser uma das suas artes, a aptidão para desenhar meias acima do joelho com carvão tornou-se a sua habilidade de sobrevivência e o seu questionamento sobre tudo e todos marcou-lhe também o corpo, mas levou-a a querer saber ainda mais sobre o mundo.

Ateia, por influência da sua família, tomou a decisão de experimentar as diferentes religiões, nas quais encontrou um suporte. Frequentou a missa, fez a comunhão e foi batizada. Mais tarde, tornou-se catequista. Hoje é uma mulher que se guia pela fé, mas que nunca deixou de questionar. Para quem lhe perguntar sobre a Bíblia, dirá que é uma construção social, um conjunto de metáforas que explicam o comportamento humano e que procuram transmitir valores morais positivos.

A representação da mulher nas sagradas escrituras deixa-lhe dúvidas. Explica terem de ser lidas à luz do tempo em que foram escritas. Refere, ainda, que muito daquilo que é dito corresponde à realidade. Uma realidade entre meias palavras... A mulher como a única capaz de trazer ao mundo o Homem, a mulher como estimuladora da carnalidade e a mulher como a linha guiadora do comportamento humano, enquanto educadora, enquanto companheira, enquanto mãe.

Ao longo da sua vida, tal como qualquer outra pessoa, errou. Contudo, os seus erros basearam-se na obrigação moral em ajudar os outros. Uma ajuda aos outros que condicionou a atenção dedicada aos seus mais próximos. Trabalhou num lar, numa creche, acolheu crianças como se fossem suas e confiou a sua fé a todos aqueles que lhe pediam ajuda.


Comicidade

Muitas são as peripécias cómicas desta mulher, eu decidi enumerar apenas duas: o friozinho e o baile da vassoura. Admito, no entanto, que ditas pela sua voz e através dos seus trejeitos, ganham uma força impossível de mimicar.

Comecemos então, como a regra manda, pela peripécia da mulher que ia a meio do caminho do trabalho e sentiu que lhe faltava algo. Tentou perceber o que lhe faltaria. Os óculos? Não. As chaves de casa? Não. A carteira? Também não. De repente, começou a sentir frio num lugar incomum. A sua boca. As possíveis justificativas vêm logo ao de cima. Vento, uma chiclete de menta ou uma maçã vinda do frigorífico? Não. Tratava-se de um esquecimento que hoje poderia ser equiparado à impossibilidade de deixar o telemóvel em casa - a sua dentadura.

Pausa. Riam-se, discutam a veracidade da sua história ou contestem o nível de piada da mesma. Mas peço só - imaginem-se a vocês ou a alguém que conhecem como a palma da vossa mão nesta situação. Pausa. Reflitam sobre o que sentiram.

O baile da vassoura retoma-nos a uma tradição antiga. Hoje ninguém ou quase ninguém pondera a ida a tal cerimónia. Contudo, noutros tempos, os jovens adultos iam e deliciavam-se com tais eventos. Uma noite quente. Uma sala de mulheres e homens bem fardados. Uma roda. Uma vassoura. A força do destino.

Enquanto a música tocava, as mulheres tinham uma função. Fechar os olhos e deixar cair das suas mãos uma vassoura. A direção da queda da vassoura determinava quem seria o seu par. Neste caso, a vontade e o destino aparentaram não se cruzar. Ao invés do janota da sala, a vassoura caiu aos pés de um bailarino com dois pés esquerdos.

Suspense, admiração e a obrigação de prosseguir com a tradição levaram a que o destino afinal batesse certo. Hoje, velhinhos, sentados no sofá com as suas mantas quadriculadas, sempre acompanhados de uma garrafa de água e bolachas de água e sal, deliciam-se com as telenovelas brasileiras e discutem sobre o que deverá acontecer à personagem principal.


O sorriso da perfeição morreu

A descrição desta mulher parece espelhar a perfeição, à luz daquilo que a sociedade considera ser o bem-fazer e dos sonhos de cada um de nós. No entanto, esta também é a mulher que carrega os seus fantasmas. Fantasmas que escondeu no seu sorriso e na sua forma condicionada de ver o mundo. 

Como o avanço do tempo traz consigo sequelas inevitáveis, o sorriso da perfeição morreu. A vontade incessante de ajudar os outros reduz de dia para dia. Os esquecimentos e confusões são constantes. Tratam-se, agora, de memórias que quase que se esquecem, mas que para sempre permanecerão.

Bruna Almeida de Sousa 
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